quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Os Romances de Cavalaria, a Literatura Fantástica e a Camaradagem: a importância da amizade e a influência de J. R. R. Tolkien nos escritos de George R. R. Martin

"Estou feliz em tê-lo aqui comigo” – disse Frodo. – “Aqui, no fim de todas as coisas, Sam.” 
~ J. R. R. Tolkien, O Senhor dos Anéis, O Retorno do Rei



Mesmo com as inúmeras diferenças entre o estilo literário de J. R. R. Tolkien e George R. R. Martin, várias comparações são plausíveis entre um e outro escritor, especialmente quanto à influência de Tolkien como fonte de inspiração ao autor das Crônicas. É inegável o carinho que Martin tem por um dos mais famosos e reconhecidos contemporâneos da fantasia medieval, e isso se reflete em sua obra, apesar de seu conteúdo, escrita e arquétipos serem completamente diversos entre si.

Tanto Tolkien quanto Martin seguem um modelo que tem como inspiração antiga as também populares novelas - ou romances - de cavalaria. Essas são obras de origem medieval, como as famosas histórias do Rei Arthur e da Távola Redonda, passíveis de serem reconhecidas como códigos morais e de conduta cavaleiresca, repletas de simbolismo e misticismo, típicos da literatura fantástica. Costumam seguir o mesmo modelo cíclico, de sagas, no qual se baseiam ambos os escritores supracitados.

Pode-se destacar que um dos valores passados nestas histórias é o poder e a força da amizade; tal característica foi tão marcante nos romances de cavalaria que o próprio escritor Miguel de Cervantes se baseia na firme amizade entre um cavaleiro e seu escudeiro para dar margem a todas as suas aventuras, ainda que em um livro satírico. Porém, apesar do conteúdo irônico, o autor tenta valorizar a pureza idealista do homem honesto, o lado nobre da natureza humana, sendo a amizade entre Quixote e Sancho, os protagonistas, uma das manifestações mais puras de amizade na literatura. Juntos, formam o contraponto ideal entre a fantasia e a realidade, o idealismo e o cinismo. Toda a história é baseada no vínculo de confiança e afeição que os une, e é este laço que permite que o livro tenha um "final feliz". A inspiração para tal ideia vem da união entre os dois pólos, representados em dois personagens (inclusive simbolizando a união das classes, a humanidade independente da hierarquia), que, juntos, buscam ideais nobres, vivendo aventuras,  procurando fazer valer a justiça para todos.

Já a camaradagem na saga de Martin também se manifesta de maneira ferrenha, apesar da realidade controversa e caótica em que são inseridos os personagens. Em muitos momentos da obra, ela é essencial para as decisões e ações de muitos personagens, de núcleos, posições e lealdades diversas. Dividirei esse post em duas partes, analisando neste, primeiramente, a similaridade entre a função da amizade nos escritos de Tolkien, refletindo-se pelo destino de alguns personagens, e em como isso influenciou George R. R. Martin, especificamente em uma cena que será citada.


Frodo Baggins e os Hobbits, Jon Snow e seus amigos da Patrulha da Noite





Aparentemente poderia-se dizer que não há semelhança alguma entre os puros e ingênuos hobbits das obras de J. R. R. Tolkien e os jovens rapazes que entram na Patrulha da Noite, mas isso seria uma conclusão tirada de uma análise pouco detalhada.

Apesar de que muitos dos membros de tal ordem, no atual contexto da saga de Martin, escolham fazer seus votos de serviço contra a própria vontade, sendo condenados pela sociedade como criminosos, perjuros e párias num geral, podemos perceber certas características inerentes à juventude em muitos dos personagens que nos são apresentados pela ótica de Jon Snow, quando este vai para a Muralha.


Temos Pyp, apelido para Pypar, que viajara os Sete Reinos junto a uma trupe de pantomimeiros. Ele é um rapaz esperto, apesar de jovem, que diz ser capaz de reconhecer qualquer sotaque de Westeros. Pyp faz amizade com Jon Snow, e o ajuda a defender Samwell Tarly, um de seus companheiros da Muralha, das provocações que sofria dos outros membros. Seu nome pode ser claramente inspirado em Peregrin Took (ou Peregrin Tûk), cujo apelido era justamente... Pippin. O membro mais novo da Sociedade do Anel, e do grupo de hobbits amigos de Frodo, que o acompanham em sua jornada desde a saída do Condado. Pippin mantêm-se leal a Frodo desde o começo, e persiste na demanda do Anel, em seus diferentes papéis, inclusive lutando em diversas batalhas, até que Sauron finalmente é destruído. Além disso, sua personalidade não difere muito da do personagem da saga de Martin, compartilhando o espírito inquieto e desbravador, e até certas atitudes inconsequentes provenientes da idade tenra.



Outra semelhança está no colega mais próximo de Jon Snow, Samwell Tarly, também conhecido como Sam. Samwell sofre provocações de inúmeros membros da Patrulha da Noite por ser gordo, fraco e destreinado, um menino rico, criado com todo o conforto dentro do território de sua Casa. Apesar disso, Jon, Pyp, Grenn e alguns outros da Patrulha conseguem enxergar a grandeza em Sam, e suas virtudes inegáveis: seu interesse por adquirir conhecimento, sua vontade de ajudar, sua generosidade e, também, sua coragem. Samwell passa de "Sam, o Covarde", para "Sam, o Matador", ao enfrentar um white walker com o punhal de obsidiana e destruí-lo.

A inspiração é claríssima em Samwise Gamgee (ou Gamgi), amigo mais próximo de Frodo Baggins (ou Bolseiro), cuja alcunha, no final dos livros, tornou-se "Samwise, o Bravo". Ambos os personagens foram subestimados por outros de maior poder, riqueza e supostas capacidades, mas acabam por provar-se indispensáveis para inúmeros eventos importantes em suas respectivas fontes literárias. Sam e Sam compartilham a perseverança, a humildade e o afeto simples e honesto por aqueles que prezam.

É importante ressaltar que Sam e Frodo também entram no mesmo vínculo de "cavaleiro e escudeiro" herdado dos clássicos romances de cavalaria, uma vez que Samwise é o jardineiro de Frodo, e o trata sempre como seu patrão, embora o Portador do Anel preferisse que não o fizesse. Apesar da diferença hierárquica, a amizade entre Frodo e Sam é crucial para toda a cadeia de eventos que culminam na destruição do Anel, e é uma das demonstrações de afeição mais puras e abertas de toda a saga de Tolkien. Aparentemente, a amizade entre Jon e Sam inevitavelmente seguiu pelo mesmo caminho, considerando que Jon tornou-se Senhor Comandante da Patrulha da Noite.

Assim como, para inúmeros eventos do núcleo da Muralha, o forte vínculo entre Samwell e Jon Snow teve influência direta. Encontram juntos o punhal de obsidiana, Sam recorre a Jon para proteger Goiva, e Sam ruma para a Cidadela para tornar-se Meistre por ordem de Jon Snow, como Senhor Comandante, acreditando em seu grande potencial. Provavelmente esta amizade ainda será motivo de muitas reviravoltas a ocorrerem nos livros futuros.


O próprio Jon Snow é um personagem que compartilha características com o jovem Frodo Baggins. Jon e Frodo são órfãos, e não têm maiores sonhos na vida além dos de cumprir seus próprios papéis de direito. Snow deseja ir para a Patrulha tornar-se um patrulheiro, Frodo, continuar no Condado gerindo a herança de Bilbo, seu tio. Entretanto, quando são chamados a cumprir a "jornada do herói" - apesar de, na saga de Martin, não haver distinção entre heróis e vilões -, no sentido de seguirem sua própria jornada de amadurecimento, aceitam suas tarefas e persistem até o derradeiro fim. Jon não desejava ser Lorde Comandante, mas aceitou cumprir sua função. Frodo não desejava ser Portador do Anel, mas seguiu até os confins da Montanha da Perdição para destruir o Anel. Os dois seguiram a figura do "líder mártir", às suas formas, e, em uma ocasião em especial, tomaram decisões muito semelhantes.

Quando Jon Snow descobre que Ned Stark, seu pai, fora morto como um traidor, decide abandonar seus votos à Patrulha da Noite, mesmo sabendo que isso poderia acarretar sua morte por traição, e tenta fugir de Castelo Negro e os territórios adjacentes na calada da noite. Frodo Baggins sabia dos inúmeros perigos de sua jornada, e sentia-se grato pelo apoio que seus amigos hobbits lhe davam, mas decidira que seguiria sozinho, para cumprir seu dever como Portador do Anel, sem querer envolver aqueles que prezava, protegendo-os de possíveis sofrimentos. Tanto Frodo quanto Jon decidem seguir sozinhos, em um determinado ponto de suas histórias, e são impedidos pelos amigos, que os lembram que eles não estão sós; fazem parte de um todo, de um conjunto, e, assim, os relembram quais são suas verdadeiras missões, e pelo que de fato estavam lutando. Por todos aqueles que lhes eram caros, afinal. Curiosamente, tanto os hobbits quanto os amigos da Patrulha da Noite envolvem-se em "conspirações" para descobrir o que tramavam Frodo e Jon, cada um em sua respectiva saga, e sabem desde o princípio o que os amigos fariam, protegendo-os de seus próprios fantasmas, lembrando-os do carinho que tinham pelos melancólicos personagens mencionados, e impulsionando-os de maneira muito mais benéfica em suas respectivas jornadas.

Comparando os dois trechos, pode-se ver a inspiração de Martin neste momento de A Sociedade do Anel:



"— Bem! — disse Frodo finalmente, endireitando-se na cadeira, como se tivesse tomado uma decisão. — Não posso esconder isto por mais tempo. Tenho uma coisa para dizer a todos vocês. Mas não sei por onde começar. 
— Acho que posso ajudá-lo — disse Merry calmamente — Contando uma parte eu mesmo. 
— Que quer dizer? — perguntou Frodo, olhando-o ansiosamente. 
— Apenas isto, meu querido e velho Frodo: você está desolado, porque não sabe como dizer adeus. Você pretendia deixar o Condado, é claro. Mas o perigo lhe sobreveio antes do que esperava, e agora está se decidindo a partir imediatamente. E não quer fazê-lo. Sentimos muito por você.
Frodo abriu a boca, e a fechou novamente. Sua cara de surpresa era tão cômica que todos riram. 
— Querido e velho Frodo! — disse Pippin — Você realmente achou que tinha jogado poeira em nossos olhos? Não foi cuidadoso ou esperto o suficiente para isso! É óbvio que vem planejando partir e dizer adeus a tudo e a todos desde Abril. Nós o vimos constantemente resmungando: “Será que um dia verei aquele vale novamente?”, e coisas assim. E fingindo que começava a ficar sem dinheiro, e realmente vendendo seu adorado lar, Bolsão, para aqueles Sacola-Bolseiros. E todas aquelas conversas secretas com Gandalf. 
— Céus! — disse Frodo — Pensei que tinha sido cuidadoso e esperto. Não sei o que Gandalf diria. Então, todo o Condado está comentando a minha partida? 
— Ah, não! — disse Merry — Não se preocupe com isso. É claro que o segredo não vai durar muito, mas no momento só é conhecido por nós, conspiradores, eu acho. Afinal de contas, deve se lembrar que o conhecemos bem, e sempre estamos com você. Geralmente conseguimos adivinhar o que está pensando. Eu também conhecia Bilbo. Para falar a verdade, tenho ficado de olho em você desde que ele partiu. Achei que iria atrás dele, mais cedo ou mais tarde, e ultimamente temos estado muito ansiosos. Tínhamos pavor que nos pudesse passar a perna, e ir embora de repente sozinho, como ele fez. Desde a Primavera, estamos de olhos abertos, e fazendo muitos planos por nossa própria conta. Você não vai escapar tão facilmente! 
— Mas preciso ir — disse Frodo — Isso não pode ser evitado, queridos amigos. É terrível para todos nós, mas não adianta ficarem tentando me impedir. Já que adivinharam tanta coisa, por favor me ajudem, e não me atrasem. 
— Você não está entendendo — disse Pippin — Você precisa ir, portanto nós precisamos ir também. Merry e eu vamos com você. Sam é um sujeito excelente, e pularia dentro da garganta de um dragão para salvá-lo, se não tropeçasse nos próprios pés, mas você precisará de mais de um companheiro nessa aventura perigosa. 
— Meus queridos e idolatrados hobbits! — disse Frodo, profundamente emocionado — Não posso permitir que façam isso. Tomei a decisão há muito tempo, também. Vocês falam de perigos, mas não entendem. Isso não é nenhuma caça ao tesouro, nenhuma viagem de lá-e-de-volta. Estou fugindo de um perigo mortal, em direção a outro perigo mortal. 
— Claro que entendemos — disse Merry firmemente — É por isso que decidimos ir. Sabemos que o Anel não é brincadeira, mas faremos o possível para ajudá-lo contra o Inimigo. 
— O Anel! — disse Frodo, agora completamente aturdido. 
— Sim, o Anel — disse Merry — Meu querido e velho hobbit, você não leva em consideração a curiosidade dos amigos. Sei da existência do Anel há muitos anos, desde antes de Bilbo partir, na verdade, mas já que ele obviamente considerava isso um segredo, guardei para mim o que sabia, até que formamos nossa conspiração. É claro que não conhecia Bilbo como conheço você, eu era muito jovem, e também ele era mais cauteloso, mas não o suficiente. Se quiser saber como descobri, eu lhe conto. 
— Continue! — disse Frodo baixinho. 
— A armadilha foram os Sacola-Bolseiros, como já se poderia esperar. Um dia, um ano antes da Festa, eu por acaso estava caminhando pela estrada, quando vi Bilbo mais adiante. De repente, na distância, os Sacola-Bolseiros surgiram, vindo em nossa direção. Bilbo diminuiu o passo, e então de súbito desapareceu. Fiquei tão assustado que não tive capacidade de me esconder de um modo mais usual, mas entrei na cerca-viva e caminhei ao longo do campo, do lado de dentro. Estava espiando a estrada, depois que os Sacola-Bolseiros tinham passado, e olhando direto para Bilbo quando ele reapareceu. Pude ver o reflexo de um objeto de ouro quando ele colocou alguma coisa de volta no bolso da calça. Depois disso, mantive os olhos abertos — continuou Merry — Na verdade, confesso que espionei. Mas deve admitir que a coisa era muito intrigante, e eu era apenas um adolescente. Devo ser o único no Condado, além de você, Frodo, que já leu o livro secreto do velho camarada. 
— Você leu o livro! — gritou Frodo — Puxa vida! Então nada pode ser guardado a salvo? 
— Não perfeitamente a salvo, eu acho — disse Merry — Mas eu só dei uma olhada rápida, e isso já foi difícil. Ele nunca deixava o livro jogado por aí. Fico imaginando o que foi feito dele. Gostaria de dar mais uma olhada. Você está com ele, Frodo? 
— Não, não estava em Bolsão. Bilbo deve tê-lo levado. 
— Bem, como ia dizendo — continuou Merry — Guardei para mim o que sabia, até esta Primavera, quando as coisas ficaram sérias. Então formamos nossa conspiração, e como também estávamos levando isso a sério, e falávamos a sério, não fomos escrupulosos demais. Você é um osso duro de roer, e Gandalf é ainda pior. Mas se quiser conhecer nosso investigador-chefe, posso apresentá-lo. 
— Onde está ele? — perguntou Frodo olhando ao redor, como se esperasse que uma figura mascarada e sinistra saísse de dentro do armário. 
— Um passo à frente, Sam! — disse Merry, e Sam se levantou com o rosto vermelho até as orelhas — Aqui está nosso coletor de informações! E ele coletou muitas, posso lhe garantir, antes de ser finalmente pego. Depois do que, posso dizer, pareceu julgar que estava comprometido com sua palavra de honra, e simplesmente ficou mudo. 
— Sam! — gritou Frodo, sentindo que a surpresa não poderia ser maior, e não podendo decidir se estava zangado, aliviado, achando graça ou simplesmente fazendo papel de bobo. 
— Sim, senhor! — disse Sam — Peço desculpas, senhor! Mas não quis lhe fazer mal, Sr. Frodo, nem ao Sr. Gandalf, falando nisso. Ele é sensato, veja bem, e quando o senhor disse ir sozinho, ele disse não! Leve alguém em quem possa confiar. 
— Mas isso não quer dizer que eu possa confiar em qualquer um — disse Frodo.
Sam lançou-lhe um olhar triste. 
— Tudo depende do que você deseja — interrompeu Merry — Pode confiar em nós para ficarmos juntos com você nos bons e maus momentos, até o mais amargo fim. E pode confiar também que guardaremos qualquer um de seus segredos, melhor ainda do que você os guarda para si. Mas não pode confiar que deixaremos que enfrente problemas sozinho, e que vá embora sem dizer uma palavra. Somos seus amigos, Frodo. De qualquer modo, é isto: sabemos a maior parte do que Gandalf lhe disse. Sabemos muito sobre o Anel. Estamos com um medo terrível, mas iremos ao seu lado, seguiremos você como cães. 
— E, afinal de contas, senhor — acrescentou Sam — O senhor deveria seguir o conselho dos elfos. Gildor lhe disse que deveria levar pessoas que estivessem dispostas. E nós estamos, isso não se pode negar. 
— Eu não nego — disse Frodo olhando para Sam, que agora sorria — Não nego, mas nunca mais vou acreditar que está dormindo, quer você ronque ou não. Vou dar-lhe um chute forte para ter certeza. Bando de patifes enganadores! — disse ele, virando-se para os outros — Mas ainda bem que tenho vocês! — disse rindo, levantando-se e acenando os braços — Desisto. Vou seguir o conselho de Gildor. Se o perigo não fosse tão grande dançaria de alegria. Mas mesmo assim, não consigo evitar a felicidade que sinto, felicidade que há muito não sentia. Temia muito por esta noite. 
— Bom! Está combinado! Três brindes para o Capitão Frodo e Companhia! — gritaram eles, dançando em volta de Frodo."

- Trecho extraído de O Senhor dos Anéis, A Sociedade do Anel, de J. R. R. Tolkien.

"- Eles cortam sua cabeça se o apanharem, sabe? - Sapo soltou uma gargalhada nervosa. -Isto é tão estúpido, é como alguma coisa que um auroque poderia fazer. - Não é nada - disse Grenn. 
- Não sou perjuro nenhum. Disse as palavras e foi a sério. 
- Eu também - disse-lhes Jon. - Não compreendem? Eles assassinaram meu pai. É a guerra, meu irmão Robb está lutando nas terras do rio... 
- Nós sabemos - disse Pyp solenemente. - Sam nos contou tudo. - Temos pena pelo seu pai - disse Grenn -, mas não importa. Depois de dizer as palavras, não pode partir, aconteça o que acontecer. 
- Tenho de partir - disse Jon fervorosamente. - Você disse as palavras - lembrou-lhe Pyp. - Agora começa a minha vigia, foi isto que disse. Não terminará até a minha morte. - Viverei e morrerei no meu posto - acrescentou Grenn, concordando com a cabeça. 
- Não é preciso me dizer as palavras, conheço-as tão bem como vocês - agora estava zangado. Por que não podiam deixá-lo ir em paz? Só tornavam as coisas mais difíceis. - Sou a espada na escuridão - entoou Halder. - O vigilante nas muralhas - piou Sapo. Jon insultou-os a todos. Eles não lhe deram atenção. Pyp fez avançar o cavalo, recitando: - Sou o fogo que arde contra o frio, a luz que traz consigo a alvorada, a trombeta que acorda os que dormem, o escudo que defende os reinos dos homens.
- Não se aproxime - preveniu-o Jon, brandindo a espada. - Falo sério, Pyp - eles nem sequer traziam armaduras, podia cortá-los aos pedacinhos se tivesse de ser. Matthar rodeara-o por trás. E juntou-se ao coro. - Dou a minha vida e a minha honra à Patrulha da Noite. Jon bateu com os calcanhares na égua, fazendo-a descrever um círculo. Os rapazes estavam agora em toda a sua volta, aproximando-se por todos os lados. 
- Por esta noite... - Halder aproximou-se a trote, vindo da esquerda. - ...e por todas as noites que estão por vir - terminou Pyp. Estendeu a mão para as rédeas de Jon. 
- Portanto, sua escolha é esta. Ou me mata ou torna comigo.-  Jon ergueu a espada... e a abaixou, impotente. 
- Maldito seja - disse. - Malditos sejam todos, 
- Temos de atar suas mãos ou promete que voltará pacificamente? - perguntou Halder. - Não fugirei, se é isso que quer saber - Fantasma saiu das árvores e Jon enviou-lhe um olhar zangado. - Pouca ajuda você me deu - disse. Os profundos olhos vermelhos olharam-no com inteligência. - É melhor que nos apressemos - disse Pyp. - Se não estivermos de volta antes da primeira luz da aurora, o Velho Urso terá todas as nossas cabeças."
- Trecho extraído de As Crônicas de Gelo e Fogo, A Guerra dos Tronos, de George R. R. Martin.





É interessante perceber que, na fantasia medieval, a "Patrulha" dos personagens jamais é individualista. Na 'jornada do herói', não apenas a valentia e a iniciativa do personagem central são valorosas, mas sim também as qualidades e virtudes dos que os acompanham. É por esse equilíbrio de desejos e anseios que a história se desenrola, com a participação de cada um do grupo contando de forma indubitavelmente relevante para formar os acontecimentos delineados. Ainda que Frodo e Jon tenham "rompido" com as suas "sociedades", conhecem a lealdade de seus amigos, e confiam naqueles que tiveram de se afastar. A "Patrulha" jamais será solitária, tanto para os hobbits, como para os jovens companheiros da Muralha, e a força de tais vínculos puros de amizade é muitas vezes a fonte de coragem e de muitas outras virtudes individuais. Afinal, foi graças ao equilíbrio de vontades, pensamentos e personalidades, que pôde-se trazer o melhor de cada um, quando assim foi preciso.

domingo, 21 de julho de 2013

O Realismo Literário e as Obras de Martin - Comparação entre Dom Casmurro e ASOIAF

"Agora, por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada. Mas não é este propriamente o resto do livro."
~ Dom Casmurro, Machado de Assis




A literatura fantasiosa de George R. R. Martin apresenta evidentes similaridades com o realismo literário, não apenas em suas descrições por vezes bastante minuciosas, ou pela elaboração dos aspectos psicológicos dos personagens e até mesmo pela quebra dos paradigmas do romantismo presente em suas obras e no realismo. Não bastando tudo isso, há personagens que podem se refletir em reconhecidas obras do movimento citado.

Como um movimento artístico, não apenas literário, o realismo apresentou-se na Europa a partir das últimas décadas do século XIX, predominantemente na França, espalhando-se para os outros países. Aqueles que integraram tal movimento desejavam ir contra a artificialidade e o surrealismo do neoclassicismo e do romantismo, buscando trazer, através da arte, a realidade de maneira menos distorcida e elitizada. E, assim, naturalmente, demonstrar as facetas não tão nobres dos seres humanos, protagonistas de sua expressão.

A respeito do reflexo do realismo nas artes brasileiras, pode-se dizer que o mais famoso integrante do estilo, quanto à literatura, foi sem dúvidas Machado de Assis. Usaremos Dom Casmurro para esta análise de agora.

Machado de Assis foi um dos mais importantes escritores brasileiros, com obras de renome internacional como Memórias Póstumas de Brás Cubas e o próprio Dom Casmurro, cuja narrativa repleta de digressões, sarcasmo e crueza aproxima-se um tanto do estilo literário de George Martin. É possível aferir dos livros do autor seu interesse cada vez maior de aprofundar a análise do comportamento do homem, revelando algumas características próprias do ser humano como o egoísmo, a inveja, a vaidade e a luxúria, todas encobertas por uma aparência boa e honesta, como é o caso do protagonista Bentinho, do romance supracitado.

Já George R. R. Martin afirma que em seus livros de fantasia não se apresentam heróis nem vilões. Para um escritor do gênero da fantasia medieval, isso é algo um tanto inusitado. Apesar das controvertidas atitudes, por meio da narrativa em pontos de vista de diversos personagens, somos capazes de fazer uma segunda, uma terceira e uma quarta análise dos desejos, caráter e objetivos de um personagem em questão, modificando completamente nossa opinião inicial. São os casos de Jaime Lannister, Theon Greyjoy e outras complexas figuras construídas e desconstruídas ao longo da saga.



"Com que direito o lobo julga o leão?" 
~ Jaime Lannister em A Tormenta das Espadas

Quando vamos para a cabeça de seus personagens, podemos ver o que eles pensam e não temos a percepção de que há apenas bons ou apenas maus…Não. Meus personagens não são preto e branco, como a fantasia tradicional clichê. Eu não tenho o lado típico branco, com pessoas muito boas, e o lado ruim, composto por pessoas feias e más, que só usam roupas pretas. Eu fui sempre muito impressionado por Homero e sua Ilíada, especialmente a cena da luta entre Aquiles e Heitor. Quem é o herói e quem é o vilão? Esse é o poder da história e eu queria algo semelhante nos meus livros. O herói de um lado é o vilão do outro lado.
Leia mais: http://www.gameofthronesbr.com/2012/10/entrevista-gigantesca-com-george-r-r.html#ixzz2Zh8KO6kB

Esta é uma excelente similaridade entre George R. R. Martin e Machado de Assis, especialmente quanto ao livro Dom Casmurro. O protagonista e narrador da obra é o mencionado personagem Bentinho, que se coloca em uma posição vitimizada perante seu amor insuperável por Capitu, par romântico do protagonista. Considera-se traído pela mulher, o amor de sua vida, por ver semelhanças físicas em seu filho quando comparado a seu melhor amigo, Escobar. Mas as desconfianças não vêm desse momento; Bentinho, desde criança, exibe um comportamento dependente e obsessivo, sentindo-se, por vezes, acuado pela astúcia natural da menina Capitu, travessa, capaz de enganar seus pais, mentir com facilidade, e outros atos 'misteriosos' para o personagem, criado de maneira conservadora por sua mãe religiosa, com ações superprotetoras e invasivas.

Assim, Capitu seria a "vilã" de Dom Casmurro, o pólo antagônico da história, e simultaneamente o interesse amoroso do protagonista. Seria o motivo do tormento de Bentinho, mas este não é um narrador confiável. Sabemos apenas seu lado da história, que pode ser apenas a faceta de um homem tornado mesquinho e atormentado por ciúmes patológicos e uma fixação obsessiva pelo amor de sua infância, capaz de transformar este sentimento antes puro em um vício, um vínculo doentio que mais o destrói do que o apraz. Inúmeros estudiosos da obra já afirmaram que a traição é inconclusiva, por conta da parcialidade do narrador, e da própria estrutura psicológica do personagem. A partir daí surge a dúvida: não seria na verdade Capitu a vítima de toda a história? Sabemos, pelo livro, que o casal se separa por conta, acima de tudo, da patologia ciumenta de Bentinho, impedindo qualquer tipo de convivência sadia e até mesmo de confiança mútua, posto que chega a extremos como desejar envenenar o próprio filho, supondo que a criança é fruto de adultério.

Tais desconstruções são também visíveis nos personagens de Martin. A ambivalência é aplicável a todos; não há um personagem totalmente puro e heróico em sua obra, assim como não há o típico vilão criminoso e megalomaníaco. Seus personagens são cinzas, capazes de agir de maneiras diversas, para o bem e para o mal, sempre oscilando entre um pólo e outro, e, portanto, comprovadamente humanos.

Além disso, as similaridades não param por aí; a construção psicológica do personagem Bentinho, antes um jovem inteligente, sensível e promissor, tornado um senhor amargo (literalmente, Dom Casmurro) pelas reminiscências de seu passado e a incapacidade de desapegar-se do mesmo, especialmente de sua obsessão amorosa por Capitu e sua possessividade incessante, assemelhando-se curiosamente a um personagem específico, inclusive por sua história de vida: Bentinho poderia ser, na verdade, refletido em Petyr Baelish, vulgo Mindinho.

Criado como agregado na Casa Tully em favor dos atos de seu pai, Lorde Baelish, na guerra das Nove Moedas, ajudando Hoster Tully, patriarca de tal Casa, Mindinho apaixona-se perdidamente por Catelyn, a mais velha das crianças, mesmo sabendo que seu sentimento era proibido; por ser quase um plebeu, um nobre nascido na mais pobre das Casas de Westeros, jamais poderia ter a mão de uma senhora de alto nascimento. Apesar disso, o personagem propõe um desafio para o noivo de Catelyn, Brandon Stark, o mais velho dos irmãos Stark da época, um guerreiro adulto, habilidoso, que vem a lutar contra si mesmo, um jovem rapaz franzino, um mero adolescente sem aptidão para as armas. Assim, perde o duelo de maneira tão agressiva e humilhante que, se não fosse pela interferência de Catelyn, teria sido morto.

Recuperando-se de seus ferimentos, o rapaz foi enviado de volta aos Dedos, sua moradia, e jamais viu Catelyn novamente, até os eventos do primeiro livro, A Guerra dos Tronos. Somos apresentados ao seu passado pelo ponto de vista de sua antiga amada de infância, que o via como um rapaz esperto, propício a travessuras, porém sempre contrito quando repreendido. Cat defende que ele a amava verdadeiramente, mas não sabemos dizer ao certo, uma vez que, novamente, só temos a visão de seu lado da história.


"- Petyr Baelish amou-me em tempos passados. Era apenas um rapaz. Sua paixão foi uma tragédia para todos nós, mas foi real, e pura, e nada de que se deva zombar. Desejava minha mão. É esta a verdade. É realmente um homem vil, Lannister.

- A senhora é realmente uma tola, Senhora Stark. Mindinho nunca amou ninguém a não ser Mindinho, e garanto que não é da sua mão que ele se gaba, é sim desses vossos maduros seios, da vossa doce boca e do calor que tem entre as pernas." 
~ Catelyn Stark, em diálogo com Tyrion Lannister, no livro Guerra dos Tronos


A partir de tais eventos, o personagem se transforma; torna-se um vassalo de Lorde Arryn, Senhor do Ninho da Águia, trabalhando em Vila Gaivota, território do Vale, pelo controle da alfândega local, onde ele aumenta as taxas em torno de dez vezes. Suas habilidades financeiras resultaram numa série de indicações, sendo inclusive convidado a tornar-se Mestre da Moeda, compondo o pequeno conselho em Porto Real, pelo Rei Robert Baratheon. Lá, sua influência cresceu com o estabelecimento de contatos e aliados, inclusive na Patrulha da Cidade, tornando-se também dono de inúmeros bordéis da capital.

Entretanto, jamais saberemos a visão de Mindinho. George R. R. Martin já avisou aos fãs que, nos próximos livros, não incluirá novos narradores na obra. Assim como Capitu, o personagem é um mistério; ele e Varys são estrategistas atuantes nos mais importantes fatos ocorridos dentro dos cinco livros, mas nenhum leitor é capaz de dizer, de fato, quem realmente são e o que em verdade querem. E, assim como Bentinho, é alguém que saiu de uma infância dourada, repleta de afeto e alegrias, para tornar-se um adulto no mínimo controverso.

A própria construção do personagem se dá pelo uso de diversas características típicas do realismo literário. Vejamos algumas aplicáveis e principais:

Oposição ao idealismo romântico, não havendo envolvimento sentimental: Mindinho nunca teve Catelyn, e, ao tentar a sorte como o perfeito herói romântico, pelo clichê do franzino garoto que desafia o homem forte que levaria sua amada, é quase morto, sobrevivendo apenas por conta da compaixão de Catelyn. Bentinho casa-se com Capitu, mas passa grande parte de sua vida marital especulando se sua esposa o amava tanto quanto ele a amava, e duvidando de sua fidelidade, especialmente após o nascimento de seu filho.
Representação mais fiel da realidade: as consequências de todas as ações típicas de um herói romântico apenas trouxeram a Petyr o fracasso. Todavia, ao corromper-se e tornar-se um indivíduo praticamente amoral, com posicionamentos niilistas e egoístas sobre o funcionamento social, consegue ascender e tornar-se um dos nobres mais influentes de Westeros. Bentinho, enquanto jovem, foi levado contra a vontade para o seminário, e, quando voltou, pôde casar-se com Capitu. Entretanto, a vida não foi feita de flores; temia que Escobar, seu melhor amigo, o qual se afeiçoara durante o tempo de seminarista, o traía com sua esposa, que inclusive teria tornado-se mais fria e distante quando o mesmo morreu tragicamente nadando no mar, em um dia de ressaca. Este foi o ponto alto para que a loucura obsessiva de Bentinho o levasse por completo, culminando com a destruição do que restou de seu casamento.
Romance é um meio de combate e crítica às instituições sociais decadentes, como o casamento: O platonismo impossível de Petyr é uma clara reflexão disso. Já em Dom Casmurro, a própria tragédia conjugal de Bentinho é o tema central do romance.
Análise dos valores burgueses com visão crítica denunciando a hipocrisia e corrupção da classe: George R. R. Martin constrói uma sociedade na qual os casamentos não passam de mero contrato, como assim o eram na Idade Média, e os laços por amor se concretizavam de forma escusa, ou não se concretizavam. Em Dom Casmurro, a família de Bentinho considerava Capitu pobre demais para ele, vendo a amizade dos dois com maus olhos.
Personagens analisadas psicologicamente: até mesmo os personagens sem ponto de vista, ou seja, sem capítulos narrados por si mesmos são controversos, com fragmentos ao longo dos cinco livros delineando seu passado e sugerindo porque são quem são e porque fazem o que fazem, como o caso do indicado. Já na obra de Machado de Assis, o narrador é o próprio Bentinho, o que nos permite mergulhar profundamente em sua personalidade controversa e difícil.



“O cantor de lorde Bracken tocou para nós, e Catelyn dançou seis danças com Petyr naquela noite, seis, eu contei. Quando os senhores começaram a discutir meu pai os levou para conversar em particular, então não havia ninguém para nos impedir de beber. Edmure ficou bêbado, jovem como era... Petyr tentou beijar sua mãe, mas ela o empurrou. Ela riu. Ele parecia tão ferido que achei que meu coração iria explodir, e depois ele bebeu até que desmaiou por cima da mesa."
~ Lysa Arryn sobre Catelyn e Mindinho jovens, em A Tormenta das Espadas


Curiosamente, a desgraça de Bentinho se dá por culpa de si mesmo. Não consegue lidar com o sentimento de inferioridade que sempre teve perante Capitu, perceptivelmente mais sagaz e independente, e muitas vezes sente-se menosprezado, não amado o suficiente pela esposa, chegando a possibilidade de ter simplesmente fantasiado o adultério que jamais existiu. Não há como se chegar a uma conclusão firme sobre a fidelidade de Capitu, mas pode-se afirmar tempestivamente que Bentinho, de certa maneira, enlouqueceu. O garoto antes apaixonado e inocente tornou-se um homem desconfiado e amargo, fechado no passado, incapaz de confiar na própria esposa, transformando sua paixão avassaladora em um sentimento de posse, rancor e ódio maiores do que toda a candura e pureza anteriores, que carregava em seu coração.

Para Mindinho, a desgraça foi a mesma. O personagem tornou-se um dos mais perigosos estrategistas políticos de Westeros, sem escrúpulos, de uma frieza maquiavélica, incapaz de sentir uma gota de arrependimento por quem derrubar em sua escalada ao poder. Em sua ganância destrutiva, a única capaz de despertar algum tipo de afeição e o resto do lado humano do personagem é Sansa Stark, a memória viva de sua Catelyn do passado, idêntica fisicamente à jovem moça que partiu o coração do pequeno rapaz de origem pobre. Foi salva de Porto Real por Lorde Baelish, que aparentemente deseja usá-la como ferramenta para espalhar seu poderio ao Norte de Westeros, uma vez que Sansa Stark pode ser a chave para Winterfell, em uma ação um tanto ousada para alguém antes tão calculista.

Ao mesmo tempo que Sansa pode ser um trunfo, é também procurada em todo o Reino, caçada pelos Lannister, que a consideram responsável pela morte do rei Joffrey Baratheon, sendo um risco muito maior do que o personagem se permitia antes correr. Teria algum motivo emocional nas ações de Mindinho, mesmo após tantos anos cultivando ações e desejos meramente egoístas? O que de fato motiva o "Bentinho" de George R. R. Martin?

"Petyr estudou-lhe os olhos, como se os estivesse vendo pela primeira vez. - Tem os olhos de sua mãe. Olhos honestos e inocentes. Azuis como um mar ao sol. Quando for um pouco mais velha, muitos homens irão se afogar nesses olhos."
~ Petyr Baelish em O Festim dos Corvos

“Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me."
~ Bentinho em Dom Casmurro, de Machado de Assis

"O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência."
~ Bentinho em Dom Casmurro, de Machado de Assis

E então? Sugiro uma pergunta menos repetitiva sobre Dom Casmurro, e uma sugestão sobre a saga de Martin: que conclusão tirar a respeito de Bentinho: vítima, vilão ou nenhuma das possibilidades? E sobre seu equivalente nos livros de Martin, tão misterioso quanto Capitu porém cuja personalidade e histórias passadas assemelham-se tanto ao controverso personagem de Machado de Assis?

Resta esperar que "a vaga que se retira da praia" traga consigo as respostas, ou que mantenha o mistério, tão fascinante e temível quanto as correntezas do profundo oceano...

sexta-feira, 19 de julho de 2013

A Romântica Idealização da Mulher Amada e a Quebra do Trovadorismo


A vida não é uma canção, querida. Aprenderá isso um dia, para sua tristeza...
~ Petyr Baelish "Mindinho" 

Não há como se falar de literatura medieval sem recordar do movimento do trovadorismo, representado especialmente pelo lirismo dos bardos e suas canções. 

O trovadorismo pode ser considerado a primeira manifestação literária da língua portuguesa, datado do século XII, na Idade Média, período em que Portugal estava formando-se nacionalmente, mas acabou por tornar-se um estilo adotado pela Europa em geral. É composto por grande dose de influência da religiosidade presente na época, por temas de amor nobre e subserviente, e por grande dose de romantismo poético. O platonismo e a felicidade do protagonista ou eu-lírico não se dão pela concretude do amor, muitas vezes irrealizável, idealizado, de forma que muitas vezes o propósito de um conto folclórico ou uma canção são de apenas dedilhar a história de um amor perdido, sofrido, mas não as consequências advindas para o personagem que o sente, ou o sofre.

Acostumamo-nos, entretanto, com o estilo de George R. R. Martin, que propõe uma visionária fantasia medieval crua e realista, mas, ao mesmo tempo, permite que haja momentos de candura na história, em meio ao tormentoso cotidiano dos personagens. Todavia, para cada ação e escolha passional, muitas vezes surge uma consequência não tão romântica quanto o ato que a promoveu.

Vejamos alguns exemplos:

- Robert Baratheon, líder de sua própria rebelião, derrubou uma dinastia secular do poder, tornou-se rei dos Sete Reinos, aclamado pelo povo, desejado pelas mulheres, glorificado por seu valor em batalha. Entretanto, cada um de seus atos revolucionários fora motivado não pelo desejo de salvar o povo da opressão do Rei Louco, apenas, mas sim por sua revolta contra o sequestro de Lyanna por parte de Rhaegar, e, mais tarde, por completa fúria decorrente da morte de sua amada. Robert não sabia, mas jamais fora correspondido, uma vez que Lyanna confidenciaria a seu irmão, Eddard Stark, em tempos passados, que Robert jamais se satisfaria apenas com uma mulher. Apesar disso, ele agarrou com unhas e dentes a paixão que tinha pela irmã de seu grande amigo, e, mesmo após todo o seu triunfo em sua conquista, nada superou a perda do único real objetivo que visava: ter Lyanna Stark ao seu lado. "Nem mesmo Sete Reinos preencheram o vazio que ela me deixou". A triste "balada" do amor perdido de Robert é a perfeita cantiga de amigo, com o eu-lírico masculino, lamentando a perda da amada. Mas Martin não aprova sentimentalismos, e desconstrói, ao longo da sina de Robert, seu amor incessante, digno de canções.

A partir da perda de Lyanna, Robert perdeu o amor que tinha à vida, que antes espelhava-se em seu físico forte e ativo, no seu bom humor e carisma que conquistava a todos, e foi, pouco a pouco, transformando-se por dentro e por fora em um rei negligente, desinteressado, amargurado e conformista. Tornou-se um beberrão, um homem muito acima de seu peso, e alguém que, infelizmente, vivia no passado. Perdendo, assim, o respeito não só de seus súditos como de sua própria família, morrendo de maneira indigna para com o homem que um dia foi, e que, infelizmente, partiu do mundo junto com Lyanna... Justamente a mulher que tanto quis e perdeu. A mesma mulher que, no fim da vida do triste Rei, este morreu sem lembrar-se de como era a aparência de seu rosto, fazendo cair por terra o ideal romântico do teor trovadorista.

"Quer saber a terrível verdade? Eu nem mesmo consigo lembrar-me de como era sua aparência. Tudo o que sei é que ela foi o que eu sempre quis. Alguém a tomou de mim e nem mesmo Sete Reinos preencheram o vazio que ela me deixou."



- Sor Jorah Mormont, apaixonado por Lynesse Hightower, teve um começo de relacionamento digno de qualquer cavaleiro do mais doce romance de fantasia medieval. Mas, novamente, isto é a escrita de Martin: tendo conseguido a mão da mulher que nomeou Rainha do Amor e da Beleza em um torneio, apesar de todo o início repleto de flores e lirismo, sua esposa não se acostumou com a vida na Ilha dos Ursos, considerando o lugar frio, pobre e triste. Jorah esforçou-se para reproduzir o estilo de vida rico que a moça vivia ao sul, como um esposo devoto e zeloso, mas apenas conseguiu arruinar a si mesmo financeiramente. Como última escolha, decidiu usar da escravidão, sumariamente proibida nos Sete Reinos, para recompensar seus gastos excessivos, indo contra seus votos e sua lei, desconstruindo a partir daí a figura do cavaleiro apaixonado, porém honrado. Tempos depois, seu suserano Eddard Stark descobriu sua manobra, e o condenou à morte. Jorah fugiu para o exílio com sua esposa, mas a realidade acabou por esmagar seu casamento: Lynesse o deixou, sentindo-se desencantada e insatisfeita, enquanto o antigo renomado cavaleiro ficou só, de coração partido. Anos mais tarde, Jorah transfere seu amor perdido para Daenerys Targaryen, a quem julga ser inclusive fisicamente similar à sua antiga esposa, mais uma vez fortalecendo a figura de idealização amorosa, uma vez que a rejeição sofrida não fora suficiente, tendo sido necessário substituir seu sentimento pungente para outra mulher semelhante a que realmente amava.

Torna-se, outra vez, o perfeito cavaleiro devoto, galante, capaz de tudo por sua Senhora, que não retribui seu amor, apesar de todos os seus esforços, considerando os avanços de Jorah insistentes e desagradáveis. Mais uma semelhança com o trovadorismo: vassalagem amorosa. Para piorar sua situação, Daenerys descobre que Jorah a traiu no passado, trabalhando como informante, e até considera dar-lhe uma segunda chance, entretanto, os sentimentos passionais de Jorah falam mais alto do que seu bom senso. Após uma missão perigosa, diz à sua Senhora que ela o "deve" perdão, devido ao seu amor e histórico de serviço fiel. Ela decide banir Jorah de seu serviço, jurando matá-lo se o ver novamente. Devastado pela pior das rejeições, Jorah parte, ainda mais humilhado e, mais uma vez, de coração partido.


"Você tem um coração gentil. Há vezes em que te olho e ainda não consigo acreditar que é real."


- Petyr Baelish, mais conhecido como Mindinho, fora, desde sua mais tenra infância, apaixonado por Catelyn, ao se conhecerem em Correrio. Junto das crianças Tully, tiveram uma amizade próxima, estando o agregado sempre presente junto aos três irmãos, levando uma vida alegre, felizes crianças do verão. Similaridades com o trovadorismo: amor impossível e platônico devido a posição social da mulher ser melhor que a do trovador apaixonado.

Cego de amor por Catelyn, Mindinho não valorizava o carinho especial que Lysa sempre teve por ele, e parecia ignorar a rejeição de Cat, tamanho era seu sentimento por ela, persistente apesar da impossibilidade evidente, e assim começa a desconstrução do "protagonista" trovador. Na 'realidade', o platonismo nunca é suficiente.



"Amei apenas uma mulher, eu lhe prometo... Só a Cat."


Assim como os outros dois personagens citados, Petyr tomou a atitude galante digna de um herói de melosas canções, desesperado, quando soube que sua amada seria desposada por outro homem que não ele.

Com todas as chances contra, e, apesar de reconhecidamente ter sido um rapaz esperto desde jovem, Mindinho propõe um duelo para Brandon Stark, no qual somente não foi morto pelas súplicas de Catelyn para seu noivo, implorando que não o matasse. Pelo insulto cometido à casa Tully, Petyr, depois de curado, foi enviado de volta aos Dedos - também pela afronta de ter desvirginado e engravidado Lysa, julgando ebriamente que estava com Catelyn.

Depois desses eventos, Petyr escreve uma carta para Catelyn, de conteúdo misterioso para os leitores, a qual a mais velha das Tully se recusa a ler. Apesar dos mistérios ao redor do personagem, entende-se que sua personalidade fria, calculista e vingativa é oriunda desses infortúnios do passado, fomentada pela humilhação de ser conhecido como "Mindinho", apelido criado pelo seu "irmão" de criação, Edmure, relacionado à sua origem humilde e sua nobreza emergente, sempre subestimado. Mindinho era uma piada para os Sete Reinos, pelos quais inclusive é célebre a historia de sua vergonhosa derrota perante os Tully e o noivo de Catelyn. Porém, considerando a persistência de sua fixação por Cat, refletida, no futuro, para a filha que é perfeitamente semelhante à Catelyn de sua infância e adolescência, Sansa Stark, é possivel aferir que o antigo amor puro de rapaz tornou-se algo distorcido, porém persistente ao longo dos anos, como uma obsessão.

Vê-se que este sentimento passou de, antes inocente, para algo destrutivo, quase, de tão remoído paulatinamente, misturado a um rancor tão imenso quanto sua paixão. Martin se aproxima assim ao realismo em prosa, presente em livros como "Dom Casmurro", sendo a figura de Mindinho perfeitamente comparável à figura amargurada do Bentinho adulto e solitário. Mindinho é o “Dom Casmurro” de ASOIAF, cujo amor incalculável por Capitu (ou Cat) transforma-se em um sentimento destrutivo, que o corrói por dentro, fechando-se no passado e nos delírios de um homem que adoeceu de paixão, perdendo a essência pura de menino e todas as possibilidades de uma vida por se realizar. Enquanto Bentinho está próximo à loucura, Mindinho é o contrário: nunca foi tão friamente racional como agora, tão gélido em suas ações que perdeu a possibilidade de empatia com qualquer um que não o lembre de Catelyn. Porém, são similares a respeito da destrutitividade de seus sentimentos incontroláveis, que lhes deixaram marcas e cicatrizes incuráveis, que não se sanam mesmo após anos e anos. Desconstruindo, assim, novamente, o ideário romântico e surreal da fantasia medieval clássica, na qual o personagem rejeitado aceita sua condição, mas mantém seu amor intacto apesar de irrealizado.


Os olhos de Catelyn ou os olhos de Capitu?


É interessante a ideia de Martin a respeito de algo que, na fantasia comum, é motivo dos maiores feitos e conquistas de muitos personagens, terminando por ser justamente o estopim para o contrário em sua obra. Martin discorda do romantismo literário, das canções de amigo e de amor e da possível felicidade e satisfação na exaltação da mulher amada; os personagens antes mais sentimentais e passionais acabam por descobrirem-se como os mais iludidos, quando a realidade lhes vem cobrar sua conta depois de seus atos motivados por nada mais além de sentimentos. A paixão arrasadora, incondicional, o amor persistente, tudo isso acaba gerando, na ficção de Martin, destruição, e não construção. Ao perderem suas amadas, as razões de seu viver, os personagens perdem-se a si mesmos, e seus sentimentos, antes puros, tornam-se distorcidos e doentios...