sexta-feira, 19 de julho de 2013

A Romântica Idealização da Mulher Amada e a Quebra do Trovadorismo


A vida não é uma canção, querida. Aprenderá isso um dia, para sua tristeza...
~ Petyr Baelish "Mindinho" 

Não há como se falar de literatura medieval sem recordar do movimento do trovadorismo, representado especialmente pelo lirismo dos bardos e suas canções. 

O trovadorismo pode ser considerado a primeira manifestação literária da língua portuguesa, datado do século XII, na Idade Média, período em que Portugal estava formando-se nacionalmente, mas acabou por tornar-se um estilo adotado pela Europa em geral. É composto por grande dose de influência da religiosidade presente na época, por temas de amor nobre e subserviente, e por grande dose de romantismo poético. O platonismo e a felicidade do protagonista ou eu-lírico não se dão pela concretude do amor, muitas vezes irrealizável, idealizado, de forma que muitas vezes o propósito de um conto folclórico ou uma canção são de apenas dedilhar a história de um amor perdido, sofrido, mas não as consequências advindas para o personagem que o sente, ou o sofre.

Acostumamo-nos, entretanto, com o estilo de George R. R. Martin, que propõe uma visionária fantasia medieval crua e realista, mas, ao mesmo tempo, permite que haja momentos de candura na história, em meio ao tormentoso cotidiano dos personagens. Todavia, para cada ação e escolha passional, muitas vezes surge uma consequência não tão romântica quanto o ato que a promoveu.

Vejamos alguns exemplos:

- Robert Baratheon, líder de sua própria rebelião, derrubou uma dinastia secular do poder, tornou-se rei dos Sete Reinos, aclamado pelo povo, desejado pelas mulheres, glorificado por seu valor em batalha. Entretanto, cada um de seus atos revolucionários fora motivado não pelo desejo de salvar o povo da opressão do Rei Louco, apenas, mas sim por sua revolta contra o sequestro de Lyanna por parte de Rhaegar, e, mais tarde, por completa fúria decorrente da morte de sua amada. Robert não sabia, mas jamais fora correspondido, uma vez que Lyanna confidenciaria a seu irmão, Eddard Stark, em tempos passados, que Robert jamais se satisfaria apenas com uma mulher. Apesar disso, ele agarrou com unhas e dentes a paixão que tinha pela irmã de seu grande amigo, e, mesmo após todo o seu triunfo em sua conquista, nada superou a perda do único real objetivo que visava: ter Lyanna Stark ao seu lado. "Nem mesmo Sete Reinos preencheram o vazio que ela me deixou". A triste "balada" do amor perdido de Robert é a perfeita cantiga de amigo, com o eu-lírico masculino, lamentando a perda da amada. Mas Martin não aprova sentimentalismos, e desconstrói, ao longo da sina de Robert, seu amor incessante, digno de canções.

A partir da perda de Lyanna, Robert perdeu o amor que tinha à vida, que antes espelhava-se em seu físico forte e ativo, no seu bom humor e carisma que conquistava a todos, e foi, pouco a pouco, transformando-se por dentro e por fora em um rei negligente, desinteressado, amargurado e conformista. Tornou-se um beberrão, um homem muito acima de seu peso, e alguém que, infelizmente, vivia no passado. Perdendo, assim, o respeito não só de seus súditos como de sua própria família, morrendo de maneira indigna para com o homem que um dia foi, e que, infelizmente, partiu do mundo junto com Lyanna... Justamente a mulher que tanto quis e perdeu. A mesma mulher que, no fim da vida do triste Rei, este morreu sem lembrar-se de como era a aparência de seu rosto, fazendo cair por terra o ideal romântico do teor trovadorista.

"Quer saber a terrível verdade? Eu nem mesmo consigo lembrar-me de como era sua aparência. Tudo o que sei é que ela foi o que eu sempre quis. Alguém a tomou de mim e nem mesmo Sete Reinos preencheram o vazio que ela me deixou."



- Sor Jorah Mormont, apaixonado por Lynesse Hightower, teve um começo de relacionamento digno de qualquer cavaleiro do mais doce romance de fantasia medieval. Mas, novamente, isto é a escrita de Martin: tendo conseguido a mão da mulher que nomeou Rainha do Amor e da Beleza em um torneio, apesar de todo o início repleto de flores e lirismo, sua esposa não se acostumou com a vida na Ilha dos Ursos, considerando o lugar frio, pobre e triste. Jorah esforçou-se para reproduzir o estilo de vida rico que a moça vivia ao sul, como um esposo devoto e zeloso, mas apenas conseguiu arruinar a si mesmo financeiramente. Como última escolha, decidiu usar da escravidão, sumariamente proibida nos Sete Reinos, para recompensar seus gastos excessivos, indo contra seus votos e sua lei, desconstruindo a partir daí a figura do cavaleiro apaixonado, porém honrado. Tempos depois, seu suserano Eddard Stark descobriu sua manobra, e o condenou à morte. Jorah fugiu para o exílio com sua esposa, mas a realidade acabou por esmagar seu casamento: Lynesse o deixou, sentindo-se desencantada e insatisfeita, enquanto o antigo renomado cavaleiro ficou só, de coração partido. Anos mais tarde, Jorah transfere seu amor perdido para Daenerys Targaryen, a quem julga ser inclusive fisicamente similar à sua antiga esposa, mais uma vez fortalecendo a figura de idealização amorosa, uma vez que a rejeição sofrida não fora suficiente, tendo sido necessário substituir seu sentimento pungente para outra mulher semelhante a que realmente amava.

Torna-se, outra vez, o perfeito cavaleiro devoto, galante, capaz de tudo por sua Senhora, que não retribui seu amor, apesar de todos os seus esforços, considerando os avanços de Jorah insistentes e desagradáveis. Mais uma semelhança com o trovadorismo: vassalagem amorosa. Para piorar sua situação, Daenerys descobre que Jorah a traiu no passado, trabalhando como informante, e até considera dar-lhe uma segunda chance, entretanto, os sentimentos passionais de Jorah falam mais alto do que seu bom senso. Após uma missão perigosa, diz à sua Senhora que ela o "deve" perdão, devido ao seu amor e histórico de serviço fiel. Ela decide banir Jorah de seu serviço, jurando matá-lo se o ver novamente. Devastado pela pior das rejeições, Jorah parte, ainda mais humilhado e, mais uma vez, de coração partido.


"Você tem um coração gentil. Há vezes em que te olho e ainda não consigo acreditar que é real."


- Petyr Baelish, mais conhecido como Mindinho, fora, desde sua mais tenra infância, apaixonado por Catelyn, ao se conhecerem em Correrio. Junto das crianças Tully, tiveram uma amizade próxima, estando o agregado sempre presente junto aos três irmãos, levando uma vida alegre, felizes crianças do verão. Similaridades com o trovadorismo: amor impossível e platônico devido a posição social da mulher ser melhor que a do trovador apaixonado.

Cego de amor por Catelyn, Mindinho não valorizava o carinho especial que Lysa sempre teve por ele, e parecia ignorar a rejeição de Cat, tamanho era seu sentimento por ela, persistente apesar da impossibilidade evidente, e assim começa a desconstrução do "protagonista" trovador. Na 'realidade', o platonismo nunca é suficiente.



"Amei apenas uma mulher, eu lhe prometo... Só a Cat."


Assim como os outros dois personagens citados, Petyr tomou a atitude galante digna de um herói de melosas canções, desesperado, quando soube que sua amada seria desposada por outro homem que não ele.

Com todas as chances contra, e, apesar de reconhecidamente ter sido um rapaz esperto desde jovem, Mindinho propõe um duelo para Brandon Stark, no qual somente não foi morto pelas súplicas de Catelyn para seu noivo, implorando que não o matasse. Pelo insulto cometido à casa Tully, Petyr, depois de curado, foi enviado de volta aos Dedos - também pela afronta de ter desvirginado e engravidado Lysa, julgando ebriamente que estava com Catelyn.

Depois desses eventos, Petyr escreve uma carta para Catelyn, de conteúdo misterioso para os leitores, a qual a mais velha das Tully se recusa a ler. Apesar dos mistérios ao redor do personagem, entende-se que sua personalidade fria, calculista e vingativa é oriunda desses infortúnios do passado, fomentada pela humilhação de ser conhecido como "Mindinho", apelido criado pelo seu "irmão" de criação, Edmure, relacionado à sua origem humilde e sua nobreza emergente, sempre subestimado. Mindinho era uma piada para os Sete Reinos, pelos quais inclusive é célebre a historia de sua vergonhosa derrota perante os Tully e o noivo de Catelyn. Porém, considerando a persistência de sua fixação por Cat, refletida, no futuro, para a filha que é perfeitamente semelhante à Catelyn de sua infância e adolescência, Sansa Stark, é possivel aferir que o antigo amor puro de rapaz tornou-se algo distorcido, porém persistente ao longo dos anos, como uma obsessão.

Vê-se que este sentimento passou de, antes inocente, para algo destrutivo, quase, de tão remoído paulatinamente, misturado a um rancor tão imenso quanto sua paixão. Martin se aproxima assim ao realismo em prosa, presente em livros como "Dom Casmurro", sendo a figura de Mindinho perfeitamente comparável à figura amargurada do Bentinho adulto e solitário. Mindinho é o “Dom Casmurro” de ASOIAF, cujo amor incalculável por Capitu (ou Cat) transforma-se em um sentimento destrutivo, que o corrói por dentro, fechando-se no passado e nos delírios de um homem que adoeceu de paixão, perdendo a essência pura de menino e todas as possibilidades de uma vida por se realizar. Enquanto Bentinho está próximo à loucura, Mindinho é o contrário: nunca foi tão friamente racional como agora, tão gélido em suas ações que perdeu a possibilidade de empatia com qualquer um que não o lembre de Catelyn. Porém, são similares a respeito da destrutitividade de seus sentimentos incontroláveis, que lhes deixaram marcas e cicatrizes incuráveis, que não se sanam mesmo após anos e anos. Desconstruindo, assim, novamente, o ideário romântico e surreal da fantasia medieval clássica, na qual o personagem rejeitado aceita sua condição, mas mantém seu amor intacto apesar de irrealizado.


Os olhos de Catelyn ou os olhos de Capitu?


É interessante a ideia de Martin a respeito de algo que, na fantasia comum, é motivo dos maiores feitos e conquistas de muitos personagens, terminando por ser justamente o estopim para o contrário em sua obra. Martin discorda do romantismo literário, das canções de amigo e de amor e da possível felicidade e satisfação na exaltação da mulher amada; os personagens antes mais sentimentais e passionais acabam por descobrirem-se como os mais iludidos, quando a realidade lhes vem cobrar sua conta depois de seus atos motivados por nada mais além de sentimentos. A paixão arrasadora, incondicional, o amor persistente, tudo isso acaba gerando, na ficção de Martin, destruição, e não construção. Ao perderem suas amadas, as razões de seu viver, os personagens perdem-se a si mesmos, e seus sentimentos, antes puros, tornam-se distorcidos e doentios...

7 comentários:

  1. Khaleesi, sou fã de seus textos! Essa análise ficou maravilhosa! E adorei o ambiente do blog!

    Esse realismo de Martin às vezes me choca. Consigo enxergar muitas frustrações amorosas minhas nos personagens dele. Nem sempre a gente é correspondido da maneira que espera, e nas Crônicas a lição é dura.

    "The things i do for love."

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    1. Acho interessante como ele começa formando uma situação clássica da fantasia medieval, romântica e platônica, e depois desconstrói tudo! É como se ele quisesse dar uma lição de vida nos personagens, escrevê-los ingênuos, com tudo para viver uma vida de ilusões, e depois fazê-los sofrer e descobrir que a realidade é cruel. Além de ele misturar diversos estilos literários ao mesmo tempo, e de ser um raro escritor de fantasia medieval que não faz uso de linguagem rebuscada.

      Muito obrigada pelos elogios! Espero que continue a ler os textos!

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  2. Continuarei a ler sim, já está entre os favoritos! O que me chama a atenção é que mesmo que Martin desconstrua todo aquele conceito que eu tenho sobre as cantigas de amor , eu ainda consigo me iludir junto com os personagens! Sou como a Sansa de A Guerra dos Tronos...

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    1. Muito obrigada por favoritar! Hahahah, "sou como a Sansa", achei engraçado. Também me identifico muito com a personagem. Entretanto, quanto as obras de Martin, não sei se acredito que possa haver romantismo algum por vir nos livros que faltam...

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  3. O realismo do Sor Martin me impressiona, eu jurava que seria mais um romance comum, em que no final o vilão é destruído, mas quando comecei a ler o livro percebi que cada um é herói e vilão, o Martin trouxe um realismo impressionante para os romances de ASOAIF, deixando um sentido mais... "Verdadeiro" pra história.

    Amei seu post, de verdade, tá demais. *-*

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    1. Cada um é herói e vilão ao mesmo tempo, e isso que faz a graça da visionária fantasia medieval do Martin. Muito obrigada pelo elogio ao post, fico muito feliz!

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  4. Post A+, o único problema foi o spoiler q eu peguei de Sor Jorah, haha. Mas, A++ mesmo Khaleesi, parabéns :33

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